Terminou no último dia 29 a 14ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O documentário longa-metragem "Copa Vidigal", de Luciano Vidigal, foi exibido na "Mostra Vertentes" na sexta-feira, 28/01, no Cine-Praça.
Segue abaixo crítica de Leonardo Amaral, da Revista Filmes Polvo.
Copa Vidigal, de Luciano Vidigal
por Leonardo Amaral
Em um determinado momento de Copa Vidigal, a bola rola no campinho de terra batida. Fortuitamente é isolada para o meio de um matagal. Por mero acaso, a câmera flagra um garoto, um pequeno gandula, que se embrenha no meio da mata em busca da bola. Luciano Vidigal abandona as filmagens da partida para ir atrás do menino. Segue-o a descer o morro, esbarrando em arbustos, quase caindo. O gandula tem o controle da situação, é ele que estabelece a mise-en-scène, a partir de seus movimentos e falas. Vários planos-sequência vão se construindo pelo caminho seguido pela criança: a presença de seu corpo, a correr por um território o qual parece dominar, é a garantia da existência de tudo aquilo que vai se construindo em cena.
Sob o risco do real, Luciano Vidigal optou pelo menos óbvio: deixar de lado o jogo de futebol o qual filmava para buscar o seu fora de campo. Seguir o garoto é mais que uma opção estética, mas fundamentalmente política. Uma política impressa na imagem. Durante o percurso, o garoto fala da situação que é a de estar ali, na favela do Vidigal, Rio De Janeiro. Uma condição de vida e também sócio-cultural: em dado instante, ele fala que antes tinha medo de vir pegar as bolas que caíam no riachinho; hoje, não teme mais, pois, segundo o próprio gandula, o morro agora vive uma época de paz.
Impressionante como essa cena é definidora de um estado das coisas muito complexo: contextualiza uma série de reflexões sobre a geografia do lugar, sobre as dificuldades de se locomover nos morros (não por menos, um dos personagens do filme ganha a vida fazendo o transporte de pessoas com sua moto). Fala diretamente sobre uma situação social; o menino que sonha em ser jogador de futebol, sendo que esse sonho está diretamente relacionado a essa busca pela bola no meio do matagal. Alcançar a bola é garantir que o jogo continue, estar na beirada do campo se constitui em uma espera pela oportunidade, seja de jogar, seja de em um dia poder ser descoberto. Com a bola entre os braços, ele continua sua trajetória de heroísmo.
Na conversa com Luciano Vidigal, que nesse momento está por trás da câmera, a idéia é a de que ele (menino) pode vencer aqueles obstáculos. Mas quando pula no canal de água para pegar a bola, tem dificuldades para subir. Dá-se então um momento belíssimo: uma mão sai do extracampo para ajudar o garotinho. A câmera, instável, quase cai. Essa instabilidade reflete o que é estar ali, naquele lugar, naquele momento. Um cinema do real em sua potencialidade máxima, qualquer movimento em falso e perder-se-ia tudo. Quando a câmera quase tomba em terra, o menino demanda se Vidigal não necessita de ajuda. Nesse instante, o garoto retoma a mise-en-scène: o plano é o registro dessa inscrição, o cinema como forma de expressão de todo um contexto, história, condição social; o cinema brasileiro no morro, mas agora em busca de uma bola que se perdeu no meio do matagal.
Copa Vidigal é essa nova possibilidade de se filmar o futebol. São várias as belas imagens registradas pelo diretor, muitas de grande plasticidade, que fazem jus ao esporte. O filme acompanha o campeonato de futebol amador na favela do Vidigal. Copa Vidigal se constrói a partir da perspectiva de três personagens: Cypa, técnico da garotada, organizador e juiz da competição; Nélio, ex-jogador do Flamengo, que agora vive em Vidigal em uma casa simples e trabalha em uma barraquinha na praia de Copacabana; Thiago Beição é um jovem motoboy que teve oportunidades de ser goleiro dos quatro times do Rio de Janeiro, mas que acabou, por questões de indisciplina e destino, não alcançando seu grande sonho. Copa Vidigal é um filme de sonhos: o sonho perdido de Nélio após encerrar a carreira de futebol, o sonho interrompido de Thiago, e o de Cypa de continuar seu trabalho na comunidade. “Meu sonho é o de ser feliz”, afirma Cypa, ao final do filme.
Interessantemente, esses sonhos todos seguem trajetórias de altos e baixos dentro do próprio filme. Em desses momentos, Cypa organiza os jogos, apita alguns, mostra-se uma fortaleza em relação aos seus objetivos. Então, a montagem de Copa Vidigal é impressionante em construir e desconstruir situações: após uma partida do campeonato, em que Cypa é bastante respeitado, temos um plano que se segue em que ele coloca uma faixa sobre as grades do campinho onde ele estabelece uma paralisação do torneio por tempo indeterminado. Em seguida, em um depoimento, ele retoma um fato ocorrido em decorrência de apostas que fizeram em relação ao certame. Por não concordar com a ação, é ameaçado de morte. “Aprendi com tudo isso a ser menos arrogante. Pensava ser o adorado por todos, o Cypa do Vidigal, amigo de todos. Hoje tenho inimigos, é preciso sempre estar de olho e não confiar em muita gente”. O depoimento é embutido de uma verdade impressionante a respeito das diversas perspectivas de se estar ali, naquele lugar.
Nélio é outro personagem interessantíssimo: é a partir de suas contradições que o filme se desenvolve. O ex-jogador é simbólico da trajetória de muitos meninos que sonharam em jogar em uma grande equipe, fazer sucesso, viver do futebol. E é daqueles que conseguiu realizar o sonho, ao jogar pelo Flamengo e seleção brasileira. Mas, o destino reservou a Nélio um retorno ao Vidigal, para ser jogador amador nas peladas que acontecem nos campinhos de terra. Logo, Nélio é a trajetória clássica de erguimento e declínio. Sua vida diz respeito a de muitos outros ex-jogadores e reflete, por exemplo, alguns dos mesmos anseios e sonhos de pessoas como Thiago Beição.
O motoboy é destaque de alguns times amadores, mas não conseguiu chegar a se profissionalizar. O filme possui dois registros, a Copa Vidigal filmada em 2007 e alguns depoimentos atuais, em 2010. Em 2007, Thiago reafirmava que não desistiria do sonho de seguir uma carreira profissional. Em 2010, conformado, diz que quer apenas trabalhar e sustentar a família. Seu conformismo se contrapõe, posteriormente, com sua motocicleta que sobe o morro. A câmera acompanha seus caminhos pelo morro carioca. Um movimento de seguir em frente. Essa imagem abre e fecha o filme, como se, de alguma maneira, dissesse que a vida tem de seus percalços, mas que as coisas seguem, sempre.
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