Por Gustavo Melo, de Cannes
“Para viver um grande amor/é preciso ter braços/braços de remador”. O poetinha Vinícius de Moraes cantou e disse este versos tantas vezes, que fica impossível não lembrar deste outro poeta das imagens e das palavras que surgiu há dez anos atrás: o cearense Karim Aïnouz.
Para quem teve o privilégio de estar ontem na lotada sala do Le Théâtre Croisette nos subterrâneos do Hotel Marriott, não saiu o mesmo, algo mudou e ficou para sempre guardado, preso no peito, engasgado na garganta.
Ver o filme “O Abismo Prateado”, baseado na música “Olhos nos olhos”, de Chico Buarque, é encher a retina e o coração de orgulho.
Foi uma noite emocionante. Primeiro porque logo na quinta fileira da imensa sala de mais de 500 lugares, bem no meio, existe uma cadeira vazia. Onde em todas as sessões, mesmo lotadas, ninguém se senta, ela está reservada, a espera de outro poeta, escrito em letras pretas, garrafais: JAFAR PANAHI.
Dizem que o melhor do cinema é a sua abertura... depois lentamente, você vai escorregando pela cadeira abaixo. Em “O Abismo prateado” não é bem assim. Auxiliado pela imensidão do olhar do fotógrafo Mauro Pinheiro jr., Karim abre o seu filme destruindo todos os clichês que as águas e as ondas do mar podem trazer para a história do cinema. A Praia é Copacabana. Bairro em que mora nossa personagem Violeta, uma dentista calma interpretada por Alessandra “olhos de ressaca” Negrini, que perde as estribeiras e a cabeça após uma mensagem.
Na apresentação do filme, Karim e a equipe foram chamados ao palco. Desfilando de salto alto, vestindo uma camisa de seda dourada, onde deixava todas as costas de fora e os seios quase a mostra, Alessandra Negrini sorria e agradecia por estar ali.
Amém Negrini, amém.
Novamente: foi tudo muito emocionante. Alessandra Negrini, após a separação do marido que ama e a abandona através de uma mensagem de voz via celular: “Eu não te amo mais”, fica completamente destroçada por dentro e por fora, se machuca, cai de bicicleta, se rala, bate com a cabeça no chão e rola por cima de ferros, vergalhões velhos jogados nos fundos de um canteiro de obra.
A Câmera de Mauro pinheiro respira e obedece da melhor maneira possível tudo que aquela mulher “louca de ciúme” começa a sentir.
O filme é rápido: 1’25’’, mas é tiro certeiro. Supera todas as dificuldades e responsabilidades que uma das TOP 5 do infinito set list de Chico Buarque poderia carregar.
Após uma hora de filme, o espectador já está totalmente entregue. Ótimas participações, com atores do Grupo Nós do Morro como Mary Sheila, Luciana Bezerra e Thiago Martins. Trilha sonora sutil e divertida. Um Rio de Janeiro rico e incomum, muitas vezes desfocado, abordado em pontos famosos e inusitados, mas de maneira inteligente e noturna como o Aterro do Flamengo, as ruas populosas de Copacabana, a Perimetral e de maneira antológica temos uma grande plano sequência no Aeroporto Santos Dumont.
Nós nos perguntamos: E agora para onde o filme vai? Violeta despedaçada volta para o Mar de Copacabana e conhece uma menina no banheiro dos subterrâneos de um quiosque. Nos 25 minutos finais, a virada da personagem é contada de maneira simples e emocionante. Uma aula do famoso bordão: menos é mais.
Elenco e equipe foram ovacionados pelo público após a sessão
Fotos de Gustavo Melo e Manuelle Rosa